300 de Esparta

Uma olhada nas primeiras páginas de 300 de Esparta, de Frank Miller e sua esposa Lynn Varley, pode fazer o leitor reconsiderar tudo que imagina saber a respeito de histórias em quadrinhos. Isso porque nestas páginas não há “quadrinho” nenhum. São três painéis de página dupla que introduzem a narrativa fazendo a arte extrapolar os limites da página.

Frank Miller já havia desenvolvido sua técnica narrativa ímpar nas várias séries de Sin City que publicou na primeira metade da década de 90. Mas como Sin City era toda em preto-e-branco, nem sempre o preenchimento de toda página produzia um impacto tão forte quanto o produzido pelas cores de Lynn Varley.

É a cor que dá a dimensão da marcha dos 300 espartanos que o rei Leônidas lidera para enfrentar os persas na batalha das Termópilas. Mais do que uma noção de distância, o espaço que rodeia os personagens tem uma consistência dada pelas pinceladas da artista; o céu carregado parece ter um peso sobre os soldados.

Esta visão do coletivo faz parecer que o foco da narrativa é exatamente o grupo, ainda mais com a narração do orador Dilios. Contudo, nas páginas seguintes, Miller começa a compor seus enquadramentos mais detalhados e intimistas, aproximando o foco narrativo do rei Leônidas.

Enquanto todos partem de peito aberto para a batalha contra os persas, sem se questionar a respeito de nada, somente o rei reflete sobre as escolhas que ele e seus homens têm feitos desde que as hostilidades com Xerxes começaram.

Leônidas teve que enfrentar a corrupção dos sacerdotes antigos de Esparta que cederam ao ouro do rei persa e lhe impediram de levar todo seu exército à guerra em época de festividades religiosas. Por outro lado, este mesmo desprezo pelo temor religioso serve para questionar a fé cega de seus soldados rumo à batalha. O rei se lamenta por a maioria deles não saber o que significa dar a vida por Esparta e serem tolos o bastante para não temer o inimigo.

Assim, Leônidas está em conflito com todos os valores que ainda restam do que ele chama de “mundo antigo”, o mundo supersticioso dos mitos e anterior ao racionalismo das leis e da filosofia.

O discurso que move os soldados ainda é lugar comum nas narrativas de hoje, com o sacrifício pessoal em nome do interesse coletivo pregado de forma irracional. Se esse discurso fosse tomado como chave de leitura para 300 de Esparta, esta minissérie não traria nenhum conflito ou inovação.

Mas dos questionamentos e das reflexões de Leônidas nascem os momentos brilhantes da narrativa. A maneira como o jovem rei é retratado nas histórias de Dilios sobre seu dia na floresta, o ritual de passagem dos espartanos, é a metáfora que o define ao longo de toda a história. Em seu coração nobre e experiente, não é medo o que existe, mas uma ansiedade maior diante das coisas.

A todo momento a narrativa visual articula o olhar sobre o coletivo e o foco no semblante do rei. Nestas passagens prevalece o gênio de Miller ao criar painéis horizontais, usando com maestria a página dupla para compor livremente a narração.

Com certeza os históriadores podem e devem observar e destacar certas liberdades que Millar tomou se afastando um pouco da história oficial. Contudo a série é um prato cheio para se fazer um paralelo histórico sobre as guerras, a trama política que as move e o papel do líder.

Com esse enfoque, 300 de Esparta funciona muito mais como história lírica e intimista do que como uma narrativa histórica. Apesar do cenário e de todo pano de fundo histórico, é o íntimo do personagem Leônidas que tem algo a ser transmitido pela narrativa de Dilios, aos gregos e ao leitor.

 

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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