Câmara de Gás

Uma das variantes do gênero policial são as histórias de advogados. Essas tramas, onde esses juristas engravatados vivem agitadas aventuras bem diferentes do cotidiano normal de um advogado que tem que acompanhar lentos processos, se popularizaram, principalmente nos EUA. Seguindo uma estrutura narrativa semelhante ao gênero policial, nessa linha de histórias se somam o humor sobre os advogados e as questões jurídicas que acontecem dentro e fora dos tribunais.

Um dos ícones dessas histórias com advogados é John Grisham. Esse prolífero escritor com mais de 30 livros publicados, entre eles alguns novos clássicos da literatura americana, sempre surpreende seus leitores com tramas intrincadas e aventuras de advogados que vão descobrindo coisas muito mais complexas em seu trabalho do que poderiam imaginar. Como não poderia deixar de ser, muitos de seus livros foram adaptados para cinema em filmes de grande sucesso.

Dentre as várias possibilidades, inclusive alguns muito mais relevantes que esse, como Tempo de Matar, esse se destaca por ter tanto um questionamento muito forte quanto por ter um ritmo de investigação e ação muito bem colocado. Uma das grandes sacadas é que o primeiro capítulo do livro conta toda a história do crime de Sam Cayhall.Descrito claramente com todos os detalhes e nuances, o leitor já sabe imediatamente que Sam era um membro relutante do Ku Kux Klan e que sua participação no atentado que causou a morte dos dois filhos de um advogado judeu foi muito pequena.

Assim dois mistérios andam em paralelo. O primeiro é a verdade sobre o crime, que o leitor sabe, mas Adam Hall, neto de Sam que tenta libertá-lo, tem que descobrir aos poucos. O segundo é o porquê de Sam estar tão decidido em se deixar condenar, em andar pelo corredor da morte. Esse é o mistério que move o leitor até o fim, juntamente com a possibilidade de Sam ser finalmente perdoado.

Uma técnica narrativa utilizada por Grisham e que ajuda a criar o clima do livro e aumentar a tensão da história é interromper a trama de ação e criar capítulos com descrições detalhadas sobre algum elemento mais técnico do caso. Por exemplo, perto do final do livro, conforme o momento da execução de Sam Cayhall se aproxima, a narrativa é interrompida por um capítulo que mostra passo a passo os preparativos para a execução e como é esperado que o condenado morra. Pode parecer algo desnecessariamente cruel, mas isso ajuda a passar para o leitor a angústia do condenado. Um capítulo desses, colocado em um momento certo, como é feito nesse livro, prende a atenção do leitor, pois ele entra em uma torcida desesperada pela liberdade ou mesmo pelo fim da pena de morte.

Outra coisa relacionada a isso é o processo de construção e desconstrução de Sam como vilão. Ele aceita em paz sua morte porque para ele, mesmo não sendo culpado por esse crime, ele tem outros mais graves que passaram sem punição. Ao mesmo tempo você tem um senhor de idade, frágil e que não poderia causar mal a mais ninguém mesmo que quisesse e esse é o terrível vilão que muitos querem ver morto. O leitor simpatiza mais ainda conforme descobre o trágico passado dos Cayhall, as histórias de violência e crueldade de uma família ligada ao KKK e de uma nova geração que cresceu conhecendo o ódio racial como única verdade possível. Com todo esse conhecimento passado para o leitor, Grisham pode fazer uma seqüência de maravilhosos diálogos de um condenado e sua família. Merece prestar atenção especial à conversa quase sem palavras e praticamente de gestos e olhares entre Sam e seu irmão. Os dois tiveram a mesma criação, os dois trilharam o mesmo caminho, só um consegue entender ao outro. Como não poderia deixar de ser, a ultima conversa entre Sam e seu neto, que tanto lutou por ele, é simplesmente fantástica.

Toda essa trama de suspense e pistas desencontradas junto com vários coadjuvantes muito bem construídos, como a tia e o pai de Adam, ajudam a montar o cenário que Grisham gosta de retratar, o sul dos EUA, a região das plantações de algodão nas margens do rio Mississipi, no interior do país. Ele consegue mostrar o clima de ódio racial que se mantém no ar passando de geração para geração e apodrecendo algumas famílias como os Cayhall. É interessante que apesar do pai de Adam já estar morto quando a história começa ele pode ser considerado como um coadjuvante por compor tanto o histórico familiar como por ser uma história por compreender.

Mais que um simples livro policial, Grisham faz uma autópsia do passado racial dos EUA, de movimentos como a Klan e mostra como a sociedade foi evoluindo com o passar das gerações. O interessante é que ele nos conduz à idéia de que a discriminação e o separatismo continuam existindo, sejam por razões econômicas ou por puro racismo mesmo. Assim, a sociedade não melhorou, apenas se maquiou e ficou mais hipócrita. Mantém seus preconceitos velados e os compensam com execuções como a de Sam.

Ainda existe uma conveniente ironia no livro. As datas dos eventos foram escolhidas de forma que Sam fosse executado na câmara de gás, método abolido posteriormente pelos EUA por ser considerado ineficiente e excessivamente cruel. Assim vemos um sujeito que matou judeus sendo condenado a morrer da mesma forma que muitos judeus foram executados pelos nazistas.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

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