Ser Canalha

Rex Stout trabalhou com várias coisas antes de se aposentar e dedicar sua vida á literatura policial. Nascido em Indiana, nos EUA, em 1886, teve fama de menino-prodígio em matemática, chegando a ser exibido em feiras populares. Freqüentou a Universidade do Kansas, mas largou os estudos para alistar-se na Marinha. Trabalhou como escritor free lance, guia turístico e contador itinerante antes de criar um sistema bancário para escolas que lhe rendeu bom dinheiro. Em 1927, com os lucros de sua invenção, mudou-se para Paris e tornou-se escritor. Sete anos depois criou Nero Wolfe, o investigador particular que lhe daria fama mundial. Morreu em 1975, numa villa suntuosa à beira do Mediterrâneo.

Stout é hoje considerado um dos mestres da literatura policial, apesar de não ter tanta fama no Brasil. Seu principal personagem, Nero Wolfe, protagonizou mais de 30 livros publicados em 22 idiomas, teve um filme e um seriado para televisão. O segredo do seu sucesso? Com um texto envolvente, uma narrativa com todos elementos necessários do romance policial, muito sarcasmo e personagens interessantes, muito interessantes.

Toda história policial precisa de um investigador. Todo investigador tem que ser rápido, ágil e sempre correr atrás do criminoso até pegá-lo. Nero Wolfe vai contra tudo que se espera de um detetive normal. Ele é um rico excêntrico que só trabalha por honorários altíssimos e quase nunca sai de sua casa. Sim, ele detesta se locomover. Não é por menos; segundo o próprio Wolfe é uma questão de física, para se mover uma pessoa obesa como ele é necessário muito esforço, esforço facilmente poupado ficando parado.

Então você poderia pensar que ele só sai do conforto de sua casa para trabalhar e não poderia estar mais enganado. A primeira regra de Nero Wolfe é nunca sair de casa a trabalho. Existem outras regras, como não falar de trabalho durante as refeições, cuidadosamente preparadas por seu chef francês pessoal, e nunca ser interrompido durante suas visitas à estufa na cobertura da sua casa, onde ele acompanha o desenvolvimento das suas orquídeas premiadas.

Como toda história clássica, o detetive precisa de um parceiro e Nero Wolfe tem o arredio e insolente Archie Goodwin - não confundir com o escritor e editor homônimo. Goodwin é o completo avesso de Wolfe: irriquieto, sempre sedento por ação, muito irônico e sarcástico, mas é sempre um gentleman com as mulheres. Ele é os olhos e as pernas de Nero Wolfe nas ruas. Cabe a ele seguir as pistas que só Nero Wolfe descobre, entrevistar os suspeitos e envolvidos e tentar agir tão rápido quanto a mente de Nero Wolfe trabalha. É claro que o trabalho de detetive não é sua única função, ele tem que administrar as finanças de Wolfe, servir de secretário pessoal, motorista e segurança.

Um dos principais elementos que garantem o sucesso das histórias é a interação entre Nero e Archie. É óbvio que a inspiração para a dupla vem dos clássicos Serlock Holmes e Watson de Conan Doyle, mas Stout deu seu toque pessoal ao esquema transformando os seus personagens não em uma imitação, mas sim em uma ironia da dupla clássica.

Assim como o narrador da história é Goodwin, temos uma constante caricatura de Wolfe, sempre descrito da pior forma possível por seu assistente. Além do que os dois se desafiam constantemente, provocando um ao outro, mas sabendo que não podem viver um sem o outro, uma vez que Wolfe demoraria muito para treinar outro detetive e Goodwin nunca acharia um trabalho tão interessante.

Ser Canalha não é o primeiro dos livros de Nero Wolfe, esse lugar é do romance Serpente. Contudo, este livro é um dos que melhor representa a série entre os publicados em língua portuguesa. Todos os elementos típicos estão ali, uma investigação envolvendo um assassinato na alta sociedade nova-iorquina, a polícia completamente perdida sem a menor pista de por onde começar o caso, Wolfe com suas eternas regras, sua desconfiança para com as mulheres, a refinadas pausas para refeições e, é claro, a reunião final no escritório de Wolfe com todos os envolvidos para a revelação do culpado.

Um dos elementos que destacamos em nosso texto sobre a narrativa policial que é visto claramente aqui é a questão do leitor tentar juntar as pistas. Acompanhamos o caso pelo relato de Archie Goodwin, que é o narrador da história. Por ele passam todas as pistas, ele conhece todos os envolvidos e entrevista pessoalmente cada um deles. Contudo não temos acesso ao ágil raciocínio de Wolfe. Assim, como Archie, ficamos perplexos quando ele decide enviá-lo para investigar algo aparentemente sem importância. Passamos o livro todo tentando achar sentido nas pistas e, mais do que isso, tentamos descobrir o que Nero Wolfe está pensando quando se reclina em sua cadeira de couro feita sobre medida e com os olhos semi-cerrados movimentando o lábio inferior para frente e para trás. Além de juntar o quebra-cabeça temos que entender porque uma pessoa que detesta trabalhar decide chamar um dos envolvidos e porque ele lhe faz certas questões. Wolfe é o mais econômico dos detetives, seus movimentos e sua perguntas são precisas e calculadas de forma a demandar o menor esforço possível.

Dessa forma, Ser Canalha é um ótimo representante do gênero policial. Ele tem os elementos clássicos, mas não é uma mera cópia. O autor soube criar seus personagens de forma a brincar com os conceitos que se tem sobre os livros do gênero. Além disso é um romance muito bem escrito com uma história interessante e divertida.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

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