Estranhos no Paraíso

A maioria das pessoas pensa nas histórias em quadrinhos como uma mídia para super-heróis, humor ou aventura. São poucas aquelas que pensam de imediato em uma história de amor. Felizmente, Terry Moore foi uma dessas pessoas. Ele criou Estranhos no Paraíso, uma história que, antes de tudo, é um complicado romance.

A premissa básica da história é "sem amor, somos todos estranhos no paraíso". Mas também pode ser descrita como “David, que ama Katchu, que Francine, que não sabe o que quer”. Partindo desse pequeno triângulo amoroso disfuncional, Moore conseguiu criar uma história fantástica onde pode abordar quase todos os temas possíveis no convívio destes três personagens, não se importando com o quão polêmicos eles sejam.

Já na abertura da série, publicada no Brasil como uma minissérie pela editora Abril, ele trabalha dois temas polêmicos: sexo e homossexualidade. Francine tem um namorado, mas tem medo que ele só esteja interessado em sexo e que se transar com ele seja abandonada logo em seguida. Katchu gosta muito da amiga, até demais. Na verdade, sente que elas estariam melhores juntas, mas não tem coragem de se assumir. Nisso entra na história o gentil David, que conhece Katchu e se apaixona, fazendo de tudo para ficar com ela, apesar das constantes ameaças da moça contra sua vida.

Essa primeira história já é suficiente para encantar qualquer um. Pessoas reais vivendo problemas reais, como ter que acordar cedo, gostar de alguém e não conseguir dizer, tentar provar que é a pessoa certa para outra, trair, ser traído, entre outras coisas. Contudo, a segunda história dá um grande salto em todos os sentidos.

Publicada no Brasil pela Via Lettera em dois álbuns, Sonho com Você mostra que não existem limites para Moore. Em uma história muito poética e muito bem amarrada, ele usa como mote uma música que ele mesmo criou (com direito a partitura para piano e tudo):

"Não sei por que, mas eu...
...sonho com você,
te perdendo...
Sonho com você, ainda sonho.
Será que é assim com você?
Falar "oi" e dar "tchau"
Será cruel? Como eu faço pra
esquecer você?
Mesmo assim, te perdendo,
Sonho com você.
Te perdendo...
Sonho com você. Ainda sonho."

Essa música fica na cabeça de Katchu o tempo todo quando o passado volta para perseguí-la. Toda uma história, que o leitor nem imaginava existir, é revelada quando Emma, uma amiga dela, está à beira da morte por ser HIV positivo. Antes de morar com Francine, Katchu viveu nas ruas e foi acolhida por uma garota de programa, que virou sua melhor amiga e lhe apresentou a cafetina Sra. Parker, que lhe empregou como garota da programa.

Como Francine não conhecia essa história e Katchu não queria que ela soubesse, temos nesse arco belíssimas cenas de solidão da personagem. Além de seus estranhos pesadelos que a perseguem desde que descobre sobre a doença de Emma, Katchu terá que lidar com a Sra. Parker, que volta a perseguí-la por achar que ela está escondendo um dinheiro que Emma tinha roubado.

Uma das grandes revelações é o fato de David ser irmão da Sra. Parker e ter encontrado as garotas para espioná-las. Apesar de não gostar do que a irmã faz e somente ter aceitado a incumbência para proteger Katchu, ela passa a odiá-lo por ter confiado tanto nele. Contudo, o presente de despedida de David chega muito próximo de redimi-lo. Ele recupera a casa onde ela e Emma passaram algum tempo, uma casa na beira da praia que sempre aparecia nos sonhos de Katchu, e entrega a chave com uma carta dizendo-lhe para ter bons sonhos.

Além de uma história fascinante, a arte, feita também por Terry Moore, é um espetáculo à parte. Com um traço limpo, extremamente sintético e eficiente, ele não desperdiça nenhum risco. Sua sensibilidade no desenho dos personagens e na composição das cenas é sem igual. Outro detalhe que surpreende são suas capas. Com cenas muito simples e sempre poéticas, ele consegue dizer tudo com apenas uma imagem.

No geral, lembra muito as histórias dos irmãos Hernández, de Love & Rockets, ícones do underground que abordaram o mesmo tipo de situações já no começo dos anos 80. Ambos têm em comum o fato de lidarem muito bem com temas cotidianos com um tratamento estético muito sofisticado, explorando toda potencialidade da arte seqüencial. O maior problema de muitas obras que têm esta intenção é não gerar um atrativo visual para a narrativa, desequilibrando a associação de argumento e desenhos, tema e forma.

Com a retomada da série no Brasil pela HQM Editora, está mais do que na hora das pessoas redescobrirem esse material fascinante e ver que quadrinhos podem discutir temas mais complicados e reais do que a gente pensa.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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