J. Kendall: As aventuras de uma criminóloga

Entre as várias obras apresentadas nesta seleção de histórias policiais, principalmente entre as mais recentes e da televisão, fica claro o esforço dos criadores para dar à trama um elemento particular e diferenciador. Esse trabalho se torna ainda mais necessário por conta do prejuízo que precede o gênero policial como um todo, que diz que se trata apenas de entretenimento fácil e popular, na pior acepção do termo. Assim, o desafio é duplo porque a obra tem de superar a barreira que cerca o gênero e depois destacar-se entre tantos concorrentes.

Pode-se dizer que existem duas maneiras de lidar com clichês tão fortes como aqueles que envolvem o mistério de um crime a ser desvendado. Ou o autor se torna um mestre em abordar a investigação acima de qualquer outra coisa na obra ou, inversamente, contorna este elemento e cria um outro centro para a narrativa.

Esta segunda opção é interessante porque abre as portas do gênero policial para outras temáticas e sensações que circulam em outros gêneros mais “elevados”, com uma maior capacidade de explorar a humanidade dos personagens.

O italiano Giancarlo Berardi já é um mestre reconhecido por desenvolver histórias com um apelo intimista muito forte. Sua obra prima, Ken Parker, em parceria com o desenhista Ivo Millazo, é a prova maior deste projeto criativo. A dimensão humana de suas histórias não encontra par nos quadrinhos e a série está entre as poucas que realmente sustentam a hipótese dos quadrinhos como Literatura.

Ao se aventurar no gênero policial, Berardi mais uma vez inovou na concepção de personagens, cenários e tramas que se constroem nos detalhes mais íntimos de cada um, com pequenas diferenças causando grandes conflitos.

A série originalmente chamada Giulia, no Brasil precisou adotar um subtítulo que se destacasse mais que o nome da personagem, J. Kendall: as aventuras de um criminóloga. Mas a escolha deste nome para a revista não chega a ser de todo mal porque revela um caráter muito peculiar da protagonista e que justamente a diferencia do tom de outras séries: Júlia não é uma detetive e sim um criminóloga. Portanto, não lhe interessa apenas solucionar o crime, mas também entender as suas causas e buscar acompanhar uma possível recuperação das vítimas e do criminoso.

Além da novidade de envolver todo um método diferente no trabalho da personagem, Berardi, que sempre busca um certo engajamento em suas histórias, apresenta toda sorte de crimes que ocorrem na cidade de Garden City como os problemas sociais que são. Alguns inclusive chegam a representar uma questão de saúde pública, mais do que de segurança simplesmente. Não é a toa que um coadjuvante pouco presente mas sempre incisivo é o promotor público da cidade que aparenta ter pretensões de candidatar-se a prefeito.

Júlia também é professora de criminologia na universidade, o que lhe garante uma postura mais centrada diante dos casos que investiga, sem que isso apague as angústias e os medos da própria personagem diante deles. Mas isso faz com que a sondagem que Berardi faz da alma de assassinos não se limite a uma curiosidade mórbida sobre o lado sombrio do ser humano. Tratando a todos como pessoas comuns, com um cotidiano repleto de paixões e desejos, o roteirista faz com que suas motivações sejam sempre entendidas como algo possível de acontecer em maior ou menor grau, e não uma fantasia para impressionar leitores sensíveis.

Muitas vezes, as edições se desenvolvem de uma maneira pouco usual, com o desenrolar do crime ocupando uma parte muito grande do enredo, às vezes com poucas pistas se juntando, e a poucas páginas do final a solução surge rapidamente. Não se trata de um final deus ex machina, mas de uma opção por não destacar a mecânica das investigações.

Na verdade, algumas vezes os atos em si do criminoso nem têm tanta importância. Interessa saber o que motivou ou o que foi a conseqüência emocional daquele crime. Em outros casos, pouco adianta descobrir quem é o assassino diante da revelação de uma tragédia ainda maior e mais assustadora que não se encerra com a prisão de um culpado. Vide o assassinato de um morador do asilo Saint George, na edição 11, umas das mais impactantes já publicadas no Brasil.

Exatamente por conta destas características é que Júlia não é mais uma personagem que se pode rotular de “feminista”, com qualidades que se justificariam pelo simples fato de ser mulher. Há muitos outros elementos que contribuem para que ela tenha uma sensibilidade especial que não mais salta aos olhos a questão do gênero e essa deveria ser uma meta para a emancipação da mulher, pelo menos no discurso da mídia.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

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