Histórias Repentinas

Certamente você conhece Laerte Coutinho, um dos cartunistas mais famosos do Brasil. Sua carreira começou a decolar nos anos setenta quando ganhou na categoria cartum o primeiro Salão de Humor de Piracicaba, um dos mais relevantes do país. Depois disso publicou em vários lugares, inclusive na Gazeta Mercantil, onde fazia aqueles retratos 3x4 em nanquim, mas seu maior destaque foi nas revistas Geraldão (publicada por Glauco) e Chicelete com Banana (de autoria do Angeli), dois sucessos editoriais na linha humorística editados no final da década de 80 pela Circo Editorial. Suas aparições nessas revistas foram tão boas que lhe garantiram um título próprio, também pela Circo, os Piratas do Tietê, que posteriormente seria o nome da sua tira diária publicada até hoje no jornal Folha de São Paulo.

De lá para cá Laerte fez de tudo na área de tiras e cartuns. Se juntou com Angeli, Glauco para formar o impagável grupo Los Tres Amigos, com as aventura do trio de personagens que representavam os próprios cartunistas na fictícia cidade de Maressales. Desenvolveu uma galeria de personagens como Hugo, O Gato e a Gata, Overman, Homem-Catraca e Deus. Além de uma interminável lista de humor de situações, como, por exemplo, as publicadas nos cadernos de classificados da Folha. Hoje suas tiras seguem uma linha de humor mais "cabeça" com algumas piadas existencialistas e poucas aparições de seus personagens clássicos, algo que nos remete ao início da carreira do artista.

Existem várias coletâneas do autor dignas de nota, contudo Histórias Repentinas é uma das que se destaca por ter uma diversidade estilo artístico, um humor mais adulto e por apresentar histórias em quadrinhos e não tiras. Esse álbum traz um Laerte que é desconhecido dos leitores mais jovens e muitas vezes nem lembrado pelos fãs antigos. As oito histórias foram selecionadas das edições da extinta revista Piratas do Tietê e já de cara representam um importante registro histórico, pois essa revista, junto com Geraldão e Chiclete, é um marco do humor e ajudou a firmar a cultura de quadrinhos de humor e tiras que existe no Brasil até hoje.

Se tivéssemos que procurar um tema centralizador para o álbum provavelmente seria a forma de encarar o mundo. Como as pessoas não reparam em um homem sem calça mas imediatamente notam se seu zíper estiver aberto. A história do fim da humanidade contada por pizzas. Um homem que veste uma calcinha em um único dia da sua vida e morre em um acidente o que desencadeia um boato quase irrefutável de que ele é gay. A vida toda de uma pessoa construída em cima de mentiras. Homens alados que se perseguem pela diferença da cor das penas. Tudo isso remete ao olhar restrito das pessoas em seu cotidiano, à indiferença para situações extremamente inusitadas provavelmente porque elas são tão absurdas que você as bloqueia da sua visão. Se você perguntar onde está a graça, é porque está se concentrando demais na situação em si e não reparando como os outros personagens à encaram, pois ali está a graça.

A arte de Laerte é um show a parte. Ele estudou artes plásticas e sabe fazer desenhos extremamente realistas. Essa habilidade é a peça chave da criação de seu traço cartunesco. Sabendo como seria cada traço de um desenho fotográfico ele pode distorcer os elementos, alterar as linhas, jogar com as proporções de forma à extrair o máximo de expressão e humor de cada desenho. Nesse álbum podemos destacar três estilos artísticos usados por Laerte para adaptar-se a cada história. Um mais estilizado, com traços retos que dá mais realismo e seriedade ao desenho, como em Crise, Como Caçar um Leão, Aquele Cara e Penas. Um traço mais arredondado, que remete para um humor mais imediato e escrachado, como em A Insustentável Leveza do Ser, e Lingerie. Além de um desenho bem caricato mais próximo aos outros cartunistas dos anos 80 em Pizza.

Como se vê Histórias Repentinas é uma coletânea de quadrinhos que pode ser analisada por vários ângulos. Por exemplo a escolha do título A Insustentável Leveza do Ser remetendo ao livro homônimo que fez muito sucesso e compunha o imaginário da cultura pop da época. Pode se fazer uma observação sobre o traço de Laerte na época e hoje. Notando como ele ficou mais eficiente, com linhas mais econômicas e sem carregar tanto nas sombras pretas. Além de ser uma diversão garantida com direito a muitas risadas.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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