Estrada Para Perdição

A época da Grande Depressão nos EUA produziu uma variedade muito grande de referências para a cultura popular de todo século XX. Neste ambiente que a indústria do cinema, a literatura dos pulps e as revistas em quadrinhos floresceram. Como resultado, diversos personagens e acontecimentos da vida social dos anos 30 se transformaram em elementos da cultura popular urbana que foi crescendo e fazendo com que a maioria das pessoas os reconheçam somente como ficção. Pouco se sabe sobre a vida de homens como Al Capone e Ellit Ness, mas reconhecemos o que estes nomes significam para a literatura policial e de mistério.

Esta relação entre o factual e o fictício é a raiz de Estrada Para Perdição, graphic novel de Max Allan Collins e Richard Piers Rayner. Nela estão presentes diversos elementos históricos da presença da máfia nos EUA, mesclados a criações de Collins. Destas criações, a principal é Mike O’ Sullivan, o Arcanjo da Morte, principal soldado do chefe da máfia local John Looney (um personagem real). O mistério em torno da imagem de O’Sullivan em meio à realidade é o que move esta história, narrada por seu filho, Mike Jr.

Um dia, ansioso por saber em que o pai trabalhava, Mike Jr se esconde no carro quando ele estava para sair de casa. E assim presencia seu pai executando um grupo de traficantes. A partir daí começa a fuga da retaliação da família Looney. Mais do que os momentos que pai e filho passam juntos em fuga, a tentativa de Mike Jr desvendar os segredos da personalidade de seu que ele pouco conhecia é o que mais chama a atenção na história.

Como não esteve presente em todos os momentos que conta ao leitor, Mike Jr diz recorrer aos jornais da época e aos “historiadores do crime” para preencher lacunas nos acontecimentos. Então surge a contradição entre os registros que falavam do Arcanjo da Morte O’Sullivan e o pai daquele menino que conta a história.

O’Sullivan transita em meio a todos as figuras da história da máfia e entre eles é um mito de terror. Assim como seu filho, chefões do crime e capangas não o reconhecem quando o vêem e a simples revelação de sua identidade é capaz de causar pânico. Enquanto isso Mike Jr acompanha tudo da carona do carro com o qual os dois agora fogem e procuram proteção. De onde está, tudo parece irreal e distante.

Não se trata de uma idealização da figura paterna. Muito pelo contrário, o garoto reconhece que não compreende ou aceita totalmente a moral de soldado seguida por seu pai. Mas é justamente por se ver tão diferente que Mike Jr tem curiosidade e admiração pela personalidade que os outros temiam. A tensão entre o que o jovem julgava ser correto e a realidade que seu pai lhe mostrou é o ponto forte da trama, pois O’Sullivan sabe que realidade de seu filho não é a mesma que a de seu filho.

A arte de Rayner é capaz de expressar tudo isso de forma magnífica. Os diálogos entre os personagens são mostrados de forma intimista, de uma distância muito próxima do leitor. Assim, é impossível não se surpreender quando vemos Al Capone ou Elliot Ness tão próximos de nós e ao lado de uma figura enigmática como o Arcanjo.

Por outro lado, as cenas de ação em que O’Sullivan faz jus a sua fama são carregadas de movimento e efeitos de uma narrativa cinematográfica. Segundo Max Allan Collins, a intenção foi fazer com que essas cenas parecessem com os filmes de artes marciais chineses. Este tipo de ação épica combina muito bem com o lado sentimental da história.

Histórias que mesclam eventos reais observados por um personagem com um olhar privilegiado dos acontecimentos sempre são muito boas. É nítido como o fato de estar tão próximo a ação, de ser filho de um assassino que futuramente apareceria em diversos estudos sobre o perído muda o enfoque da narrativa. Ela é feita de forma a nos colocarmos no lugar do garoto e acompanhar o desenrolar da história com a sua perspectiva mais inocente, tirando o ceticismo frio com que narraria um jornalista.

Esse efeito do contexto em que o narrador participa fica bem delineado tanto nas falas quando no retrato desenhado da sua visão. Não apenas ouvimos a voz do narrador nos relatando um fato mas nos transportamos para ação enxergando os eventos da forma que eles ficaram registrados na mente do garoto.

Perceber esta relação da arte com o clima da história é uma oportunidade que poucas vezes temos nos quadrinhos. Nem sempre roteirista e artista se entrosam tão bem para um trabalho único como esse. O mais interessante é que Max Allan Collins e Richard Rayner nem se conheciam quando produziram Estrada Para Perdição.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

 

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