Samurai X

Os mangás ainda estão sendo recebidos em muitos países como um único gênero de histórias em quadrinhos e, muitas vezes, esta visão reducionista gera muitos preconceitos por parte dos leitores. Fala-se da dificuldade de assimilar a diagramação das páginas, de uma sensação estranha com uma leitura muito rápida (praticamente o oposto do que alguns quadrinhos ocidentais tomaram como padrão) e também uma falta de entendimento das temáticas de algumas obras.

Muitas vezes a concepção de herói nos mangás parece algo completamente estranho para a cultura ocidental, um pouco incoerente talvez, por se pautar num conjunto de conceitos sócio-culturais e uma moral bem diversa. Aliado a isso, há também uma distância lingüística, no campo do discurso, que torna difícil entender plenamente uma série de metáforas dos mangás, dificultando que o leitor adentre profundamente o universo poético destes quadrinhos.

A série Samurai X (Rurouni Kenshin, no original) se mostra um exemplo bem sucedido de construção do conceito de herói de uma forma que pode ser entendida pelo leitor ocidental e apresenta uma interpretação interessante do ponto de vista da cultura japonesa, pautada em seus acontecimentos sócio-históricos.

Na história toda, predomina uma aproximação de herói e vilões que tomam parte nas disputas políticas em torno da restauração Meiji, após as guerras do final do shogunato Tokugawa. É mostrado claramente como os dois lados desta guerra tinham uma visão parecida sobre um futuro melhor para o Japão e até mesmo uma noção de “bem” e “justiça” semelhante, mas divergiam com relação aos caminhos que levariam o país a esta condição.

Kenshin Himura, um ex-assassino do lado revolucionário dos monarquistas que colocaram o imperador de volta no poder, passa por um longo processo de aprendizado do conceito de herói escolhido pelo autor, Nobuhiro Watsuki. O estilo de kenjutsu ao qual pertence tem com lema “proteger os inocentes dos infortúnios causados pelo tempo presente” e a divergência na interpretação deste lema o leva a se separar de seu mestre para se juntar ao exército revolucionário.

Depois de desistir, desiludido com tanto sangue em suas mãos, Kenshin passa a viver como um andarilho que busca se livrar da fama de retalhador, protegendo inocentes com uma espada de lâmina invertida e uma promessa de não mais matar.

Forçado a lutar novamente para impedir que outro assassino daquele exército comece uma nova guerra, Kenshin volta humildemente ao esconderijo de seu mestre para lhe pedir que termine seu treinamento. Ele somente é aceito quando seu mestre percebe que em suas andanças Kenshin finalmente entendeu o preceito do estilo Hiten Mitsurugi: que para proteger os inocentes, sua espada não deve estar atrelada a nenhuma causa política e ela deve defender justamente os inocentes que sofrem nos processos de transição da história.

O que Seijuro Hiko lhe ensina em seguida é ainda mais interessante: que para vencer, Kenshin não deve se tornar um santo ou vender sua alma ao demônio. Nenhuma causa vale o preço de uma vida humana e se ao menos uma pessoa se magoar com a sua morte, a vitória pode ter sido em vão. Entre dois adversários igualmente fortes dispostos a tudo por suas causas, apenas a vontade de viver garante a força necessária para a vitória.

Parece complicado entender este conceito, como de fato foi para o protagonista, mas ele combina bem com a visão política expressa na obra. Ao longo de toda história, mesmo os mais virtuosos e bem intencionados personagens que tomaram parte na burocracia do governo acabaram corrompidos de alguma forma pelo poder. O que Watzuki mostra é como os homens devem estar acima das causas do Estado e como esta instituição não pode substituir aqueles que ela representa.

Para tudo isso, Watzuki usa metáforas verbais e pictóricas muito fortes, que têm um sensível aperfeiçoamento ao longo da série. A precisão de seu texto demarca muito bem os elementos destas metáforas, reforçando sempre um sentimento ou estado de espírito por meio da repetição, que funciona quase como um refrão entre diálogos e a narrativa.

A dimensão da crítica do autor fica maior quando fato de que a nova era no Japão não “escolheu” Kenshin como seu herói e, sem que ele visse, a história tomou um rumo diferente daquele pelo qual lutou. Essa postura faz com que Samurai X seja uma leitura mais do que recomendada para qualquer leitor ocidental interessado em uma obra com um conteúdo profundo e bem elaborado. Principalmente se ainda existir algum preconceito com esta forma, que comporta em seu universo uma enorme variedade de gêneros, temas e formas a serem conhecidos.

(Esse texto é parte integrante da nossa série A Revolução Pop Escolar: Propostas para uma Nova Biblioteca)

 

 

Comentários no nosso Boteco ou por

Retorne a página inicial